Retalhos

"Entre o sono e o sonho, entre mim e o que em mim é quem eu me suponho, corre um rio sem fim."

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Sou um contentamento descontente

segunda-feira, outubro 23, 2006

Conto de Negro


Todos os sábados à noite ele entrava naquele bar. Um bar sombrio e pequeno. Apenas com luz de velas , cheiro a naftalina e paredes azul-bebé.
Chegava sempre à hora de abrir, quando ainda ninguém lá estava. Ficava sozinho perdido nos seus pensamentos.
Nada iria mudar. Sentiria sempre aquele buraco no peito,um grande vazio no fundo do estômago. Não sabia exactamente se a alma se localizava em alguma parte do corpo, mas se assim fosse ela deveria estar ali,no fundo do estômago...
Ficava ali no escuro, a pensar. Em tanta coisa. Sem perceber essa confusão na sua cabeça. Ás vezes, quando sozinho no escuro do seu quarto tentava abrir os olhos, apercebia-se de que já estavam abertos...Estavam sempre. Quase não dormia.
Não esperava nada, mas desejava inconscientemente que acontecesse algo que o surpreendesse. Alguma coisa que o fizesse acreditar. Fosse no que fosse.
A verdade é que nada o despertava. Para ele era sempre noite. E, de dia, se fosse possível, preferia andar com os olhos fechados e só à noite os abrir no escuro.
As pessoas desiludiam-no. As atitudes enojavam-no. O mundo que o acolhia não parecia ser o seu. Mas era. E ele acolhia-o exactamente para o sentir tal como ele era.
Depois o bar ia-se enchendo, pouco a pouco. Tal como ele, da sua vida.
Ele costumava dizer que aquela gente era como ele. Por isso ia para ali. Mas ele não era como aquela gente de negro.
Porque aquelas vestes negras eram só um estilo. Porque o negro que ele trazia era apenas no seu coração. Essa coisa que teimava em bater dentro de si.
Nunca falava com ninguém. Não conhecia ninguém no bar sombrio. Nem queria. Queria apenas se sentir entre eles. Sentir que existia. Que fazia parte de algo.
Ironicamente, não fazia parte de nada ali. Era só ele consigo.
Bebia sempre. Uma bebida atrás da outra. Tanto, que a partir de uma determinada quantidade daquela mistura,começava a odiar o azul-bebé das paredes. Enjoava-lhe o cheiro da naftalina. E aquela gente de negro tornava-se falsa. Estúpida. Disforme. Todo aquele negro sem sentido.”Não pertenço aqui!”dizia em voz alta. E todos o olhavam de soslaio.
Entao saía. Saía com a certeza que era só ele. Que era só dele aquele luto.
A fome que sentia não era cessada com alimento.Não era sanada com nada. Tentava perceber. E a sede? A sede que sentia não era apagada com álcool.
Essa fome e essa sede vinham-lhe da alma. Lá do fundo...Sentia no sangue, atravessava-lhe as veias. Era como uma explosão dentro de si, que não passava.
Fome do infinito. Sede de algo. Nada era palpável. E no silêncio da rua sentia apenas isso.
Pensava:”Não volto aqui.Não volto.” Mas sabia que voltaria. Só para sentir que existia aos sábados á noite.
Por uns segundos, ficou parado a olhar a noite. A olhar a lua. Depois prosseguiu. Caminhou sem rumo, embora os seus passos o levassem sempre ao mesmo quarto, á mesma cama e aos mesmos braços de sempre. Os braços que o protegiam do mundo, onde conseguia sonhar com o infinito...
Foi quando se apercebeu. Era capaz de amar. Esses braços.
Agora tinha a certeza.Tudo à sua volta, nas ruas da cidade, se tornava disforme, como se se diluisse. Nada daquilo precisava existir. Para quê?
Agora sabia. Amava. Acontecia, naquele momento, esse "algo" que ele desejava que o surpreendesse.
O sofrimento que tudo lhe causava não tinha sentido.O amor inundava-o e ele submergia nele. Deixava-se ir...cada vez mais fundo, cada vez mais fundo. Nada o podia atingir. Nada o podia tocar.
Sabia que sempre se iria conseguir encontrar logo que entrasse naqueles braços, naquela cama, naquele quarto. Para onde os seus passos o levavam.

5 Comments:

Blogger OLHAR VAGABUNDO said...

adorei o conto....
beijo vsgabundo

24 outubro, 2006  
Blogger Cris said...

Bonita história...

Gostei mto. Beijo

C.

24 outubro, 2006  
Blogger Embryotic SouL said...

Venho agradecer a tua terna visita no meu espaço, e aqui encontrei uma história bonita e de reflexão, uma história de amor e sofrimento. Escreves muito bem, e com criatividade.
Gostei...

Um bj sentido

24 outubro, 2006  
Blogger TG said...

o passos levaram-no aos braços, do que sempre existiu, mas ele ainda noa tinha visto e estava mesmo à sua frente. Gostei muito do teu conto.

bjs
Tiago

24 outubro, 2006  
Anonymous Anónimo said...

Que pena que a ocupação de Bardo tenha desaparecido da cultura ocidental há incontáveis anos... Resta-nos o consolo de ainda existir alguém capaz de "contar" tão boa história em pouco mais que meia dúzia de linhas... keep them coming :)

25 outubro, 2006  

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